Ainda nenhum livro foi escrito sobre a memória de Vicente Manuel dos Reis (mais conhecido como Bie Ki Sa’he). Um dos principais líderes da resistência timorense encarnou perfeitamente o sonho de libertação de seu povo e os procedimentos políticos e pedagógicos para a realização desse sonho. Na guerrilha foi uma espécie de Che Guevara timorense. Na luta pela educação de seu povo foi uma mistura de Amílcar Cabral e Paulo Freire.
Embora pouco conhecido pelos jovens timorenses, ele é considerado por muitos veteranos como um dos grandes heróis da guerrilha. Seu nome é citado somente em alguns parágrafos de poucos livros escritos sobre Timor. Partes de sua história aparecem timidamente apenas em algumas biografias daqueles que o conheceram.
Por essas poucas referências que encontramos, logo notamos que se trata de um personagem que merece mais estudos diante de suas contribuições na luta pela independência de Timor-Leste.
No Museu da Resistência Timorense não existe nenhum registro destacando ou homenageando o nome de um dos mais brilhantes líderes da resistência timorense.
A história registrada no Museu da Resistência Timorense não conta a vida de muitos líderes dessa guerra. Sobre essas histórias não contadas, torna-se importante o resgate e preservação da memória de grandes exemplos do passado como forma de inspirar os jovens e futuros líderes timorenses.
A história de Sa’he é apenas uma entre tantas outras que se perde por falta iniciativas que venham a preencher essa lacuna. Sem nenhuma estátua erguida em sua homenagem, a memória desse grande líder sobrevive pela boca do povo. Assim, na tentativa de resgate, este humilde artigo foi escrito com o objetivo de provocar uma discussão sobre a importância do registro das memórias de um povo.
O presente texto está fundamentado a partir de dezenas de entrevistas com membros da Frente Revolucionária do Timor Leste Independente (FRETILIN) e União Democrática Timorense (UDT), pessoas que trabalharam no governo português e indonésio, professores, padres, familiares e amigos de escola – diversos indivíduos que conheceram o saudoso Sa’he. Inúmeros nomes e testemunhos os quais não cabe citar todos nesse pequeno artigo.
Vicente Reis nasceu em Bucoli, distrito de Baucau, 22 de janeiro de 1953. Era filho de liurai e teve de 7 irmãos: Georgina (falecida), Mário Nicolau (Marito), Teresinha de Jesus, Marciano (morto em combate), Maria Maia, José Maria e João Leonardo dos Reis. Foi companheiro de Dulce Maria Cruz (Wewe), a timorense que veio a se tornar mãe de seu único filho, Talik Reis. Muito educado, simples e humilde, um líder que tinha o dom das palavras – assim muitos o definem.
Era carismático e tinha talentos musicais, nos tempos de estudante no Liceu Dr. Francisco Machado, como violeiro, integrou o grupo musical chamado Os Acadêmicos. Ele gostava das músicas e cantigas timorenses, era um defensor da cultura e tradição de seu povo. Mesmo antes de Portugal abandonar Timor ou de a Indonésia invadir o país, o jovem estudante já falava aos amigos do liceu sobre o sonho da independência de sua pátria, como afirma Jorge Tavares. Ao concluir seus estudos no liceu, em 1972, Sa’he foi estudar Engenharia Mecânica em Lisboa, Portugal, onde não chegou a concluir os estudos devido a seu retorno à terra natal em setembro de 1974.
Em Portugal Sa’he e sua companheira Wewe fizeram parte da Casa dos Timores, um pequeno grupo de timorenses que estudavam em Portugal na década de 1970. Mao Tse-Tung, Karl Marx, Ho Chi Minh, Ernesto Che Guevara, Fidel Castro, Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto e Paulo Freire são alguns dos revolucionários que inspiravam esses jovens estudantes.
Na Europa eles tiveram um contato ativo com as ideias revolucionárias da luta anti-colonial de independência dos países africanos. Entre eles circulavam textos sobre o leninismo, marxismo e maoísmo. Cuba, China, Rússia, Vietnã, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe foram inspirações para a futura revolução timorense.
Tempos depois, essas influências contribuiriam para a transformação da Associação Social Democrática de Timor (ASDT) em somar com a criação da FRETILIN e também ajudariam na formação política da União Nacional dos Estudantes Timores (UNETIM) em 1975.
No mesmo ano, no dia 25 de abril, a Revolução do Cravos estourou em Portugal e derrubou o ditador Salazar. Com esse evento, a FRETILIN, depois de muita discussão e luta com os grupos opositores que discordavam da descolonização imediata, declarou unilateralmente a independência de Timor-Leste em 28 de novembro de 1975. Com o golpe da UDT contra a FRETILIN, eis que surge a instabilidade e a guerra se instala em Timor, culminando posteriormente na “justificativa” da invasão Indonésia.
Sa’he foi um grande companheiro de luta do presidente Nicolau Lobato. Formou vários quadros importantes da FRETILIN. Tornou-se Ministro do Trabalho e Providência do primeiro governo. Era um defensor do trabalho das cooperativas pois acreditava no fortalecimento da classe trabalhadora por meio do coletivismo e união dos povos oprimidos. Desde 1974, já lutava pela igualdade entre homens e mulheres, como contam as mulheres sobreviventes da Organização Popular da Mulher Timor (OPMT). Em 1977 foi escolhido Comissário Político Nacional. Durante a guerrilha revelou-se um verdadeiro estrategista sem nunca ter frequentado nenhuma escola militar. Essa é uma brevíssima descrição que amigos e parentes fazem do currículo do amigo e camarada Vicente.
Aos 26 anos de idade, em fevereiro de 1979, em Manufahi (entre Fatuberlio e Alas), Sa’he foi pego em uma emboscada feita pelos indonésios, ferido na perna sangrou dias até a morte. Teve uma vida muito curta mas a viveu intensamente guerrilhando nas montanhas pela libertação plena de sua pátria. Em 2007 sua ossada foi desenterrada, a homenagem de Holarua, coincidindo com três dias de retiro da Fretilin, foi uma cerimónia simples em que participaram alguns familiares. "Seguiu-se a parte religiosa, tradicional e católica: as duas juntas, completamente diferentes, decorrendo uma em frente da outra. Foi preciso, também, contentar a população da aldeia junto da montanha conhecida por Casa dos Morcegos, que cuidou 28 anos da campa de Vicente Reis. Assim explicou, à época, o ex-Primeiro Ministro Marí Alkatiri (Agência Lusa). Seus restos mortais hoje se encontram no ossuário particular da família em Bucoli.
Há um episódio da vida de Sa’he que ilustra seu pensamento sobre os riscos da guerra, quando seu pai Manuel dos Reis o alertou de que todos eles, os líderes, iriam morrer pelo inimigo, ele respondeu com um exemplo popular: “quando plantas arroz na várzea, antes de plantares abatem-se as árvores maiores para se obter produção. Assim também os líderes têm que morrer primeiro para a luta continuar”. Daí o lema “mate ka moris ukun rasik an” (Pátria ou morte, independência). Quando alguns diziam que não sobreviveriam ao inimigo, ele explicava que “quando se parte um galho de uma planta, outro nasce em seu lugar. Assim também as FALINTIL, quando um FALINTIL morre, outro nasce em seu lugar”.
Reza a lenda que Vicente não morreu. Vez por outra algumas pessoas dizem tê-lo visto vivo em algum canto de Timor. Quando o professor José Roberto Sanabria e eu entrevistávamos seu filho Talik Reis, perguntei sobre esse fato, de pronto ele nos respondeu: “O importante é que o camarada Sa’he não tenha morrido no coração do povo timorense; toda vez que eu ouço algo sobre o que meu pai fez, as pessoas que ele ajudou, a influência que ainda hoje exerce em muitos daqueles que o conheceram, certamente isso basta para dizer que Sa’he
vive”.
Vicente Reis acreditava na mudança e transformação do ser humano. Suas armas nas montanhas não eram apenas os fuzis roubados dos inimigos, mas as lapiseiras improvisadas feitas de graveto ou bambu preenchido com carvão. Na guerrilha Sa’he tinha a convicção de que a luta armada iria libertar a sua pátria, mas que somente a educação seria capaz de libertar o seu povo. Segundo o Prof. Dr. Antero Benedito, do Instituto Peace Center, do período da resistência timorense contra a Indonésia, “fala-se muito da guerrilha armada e pouco da revolução das lapiseiras”.
Em 1975, no projeto de descolonização, foi proposta uma Reforma do Ensino que viesse atender às necessidades do povo. O objetivo principal desse projeto inicial da FRETILIN era a alfabetização de todo o povo Maubere (como os portugueses chamavam os pobres de pés descalços). Para eles, alfabetizar não era apenas ensinar a ler e escrever, mas conscientizar e politizar as massas contra a exploração. Esse projeto educacional era uma das maiores armas que Sa’he e essa vanguarda revolucionária propuseram na luta anti-colonial e anti-imperialis ta.
O ensino era inspirado nas pedagogias revolucionárias de Amílcar Cabral, Samora Machel e Paulo Freire. Uma educação crítica, baseada nos ideais socialistas, totalmente adaptada à realidade timorense. A timorização da educação feita pelo povo e para o povo. Uma educação verdadeiramente popular.
Atualmente, Timor-Leste ainda não eliminou o analfabetismo, e o projeto educacional atual está cada vez mais longe dos ideais pelos quais muitos lutaram. Contundente, o veterano José Bonifácio afirma: “Libertaram a pátria, mas não libertaram o povo”. A presença da pobreza, do analfabetismo, a falta de qualificação e empregos são provas dessa afirmativa. Mesmo com a atual democratização do ensino ainda não houve a sonhada inclusão social. O projeto implementado em Timor pós-independênc ia ainda não conseguiu eliminar o abismo existente entre as elites e os pobres. O desafio é proporcionar autonomia educacional e científica aos timorenses.
“A prática é o critério da verdade” – essa é uma das frases mais usadas por Sa’he – que acreditava que podemos definir uma pessoa por sua prática e não por seus discursos. Algumas pessoas que antes se diziam leninistas ou marxistas hoje são capitalistas. “Comodistas” – é assim que Marito Reis descreve alguns personagens dessa história atual. Com o discurso da globalização e do desenvolvimento de Timor, o capitalismo foi visivelmente incorporado. A partir de 1999, com o Referendo da ONU e a chegada do Banco Mundial, um novo projeto de nação entra em vigor. “Ajudar” no progresso e desenvolvimento dos países em crescimento são discursos usados por essas instituições que moldam sistemas de ensino e currículos de países inteiros de acordo com os interesses do capital estrangeiro. Para essas instituições, formar mão de obra para atender o mercado de trabalho é um objetivo muito maior do que formar intelectuais capazes intervir e mudar a realidade.
A Revolução do Povo Maubere foi um exemplo de luta anti-colonial e anti-imperialis ta. Restaurou-se a Independência de Timor-Leste, porém não se restauraram os princípios e valores educacionais defendidos por Sa’he e seus companheiros.
Prof. Mestre em Educação (PQLP/CAPES)
reinaldomarches i@hotmail.com
Ilustração: José Roberto Sanabria
furak!
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